quarta-feira, novembro 23, 2011

Porque sim.















Oito da noite, 7 graus lá fora e chuviscava. A chamada era de um homem que estava caído inanimado no solo à beira da estrada, logo a seguir à perigosa curva-e-contra-curva da BP, na direcção de Palhais.

Paro, ligo os intermitentes e os pirilampos azuis que reflectem tudo o que me rodeia. Está escuro...muito escuro, e só se vê preto e azul intermitente. À beira da estrada apenas consegui ver um vulto deitado junto de um muro, como se um depósito de algo ali estivesse... e estava mesmo. Era o Sr. Paulo.

Olho em volta e nada mais vejo sem ser carros e mais carros a passarem e a olharem... os Mirones, como sempre... - Boa noite Sr. Paulo, está-se a sentir bem? - Então o que lhe aconteceu? ... e as garrafas de vinho denunciaram tudo o que se tinha passado antes... - "Mais uma camada" oiço em voz baixa o Alves dizer...Mais uma vez o Sr. Paulo excedeu-se nos copos e perdeu o rumo para casa...nem se consegue levantar...

Num piscar de olhos, entre a berma cheia de lama e o alcatrão molhado que fazia escorregar qualquer bota ou pneu, pego no radio para chamar uma ambulância e quando vou começar a falar, os meus ouvidos parecem apanhar uma outra frequência...

Aquele pequeno gemido tão doce e característico que os meus ouvidos captaram como se fosse a única vibração que se conseguia ouvir, e nada mais...

"Miáu!" .....

Durante milésimos de segundo tive mil e um Flash´s a passarem à frente dos olhos. E a partir daí eles nada mais conseguiram ver. Faço um saque rápido da pequena lanterna, olho em volta com ela acesa e bem apontada como se fosse um farol e passo o rádio rapidamente ao Alves. - Toma, pega nisto!não ouviste?! - Ouvi o quê? - Pareceu-me ouvir miar!...

E no meio daquele verde molhado e inclinado que cobria todo o outro lado da estrada, aponto a luz e vejo dois pontinhos amarelos a brilharem. - Tá ali!! - "Miáu" - É um gatinho pequeno!... E num segundo em que desvio o olhar para o Sr. Paulo, olho de novo e já não o vejo!...

Volto a apontar a lanterna e vejo aqueles dois pontinhos amarelos a descerem muito rapidamente todo aquele verde molhado na direcção do alcatrão negro que se tornava ainda mais sinistro com todo o azul intermitente! - Fod%ss! - e vejo apenas o Sr. Paulo a tentar levantar-se junto do Alves e um par de luzes grandes amarelas a virem na minha direcção ofuscando toda a estrada e a ficarem cada vez mais perto de mim.

- PPSSHHHHHHIIIIUUU!!!! ...e bato com a bota no chão molhado para o assustar e penso para mim: - "NÃO VENHAS PRAQUI!!" - E de nada serviu...vejo-o a descer a encosta por aí abaixo e oiço um aflito "Miiiu" por entre um tresmalhar de ervas.

É agora. As luzes depressa se aproximam e eu aqui sem nada fazer... Ele não vai parar e as luzes também não. - Cuidado! - Diz o Alves. - Fod%ss! - digo eu...E sem pensar, saltei.

Arranquei com a maior rapidez que as botas me permitiram e nada mais vi senão aquele pequeno vulto a chegar perto do alcatrão e a sair da protecção do verde. "Miáu!" - Tenho que o apanhar! - pensava eu, e de repente oiço um "PPIIIIIIIIIHHHHH!!!" misturado com um raspar de pneus e um conjunto de luzes ofuscantes que eu já não sabia distinguir em que direcção seguiam.. e fiquei cego.



- APANHEI-O!!!!! - gritei para o Alves.

Sinto o pêlo preto macio bem junto à palma da minha mão e agarro-o junto ao peito enquanto me tento equilibrar entre uma tampa de esgoto e ambos os lados da valeta onde corria agua sem parar. - Já cá estás porra! - digo em voz alta com um sorriso enorme enquanto lhe faço uma festinha e oiço um pequeno "Miau!" como se por momentos aquele fosse um simples: Obrigado....



















E quando olho em volta, vejo que uma grande carrinha estava parada com as portas abertas e luzes acesas enquanto o vulto de um gordo saía dali para fora com ar de quem tem algo a dizer!. E tinha mesmo...

- Você mete-se assim sem mais nem menos à estrada?? - E passo por ele com a bola de pêlo nas mãos sem ligar minimamente ao que ele balbuciava... Fui deixá-lo na parte de trás do carro junto com o Sr. Paulo que já estava sentado com o seu gorro sujo na cabeça. - Tome lá Sr. Paulo!, agarrei-o bem e não o deixe cair!...

E respondo para o gordo - Com certeza Sr. condutor, peço desculpa mas teve de ser... agora agradeço que retire a viatura e siga o seu destino se faz favor. - Ele não olhou para mais lado nenhum,olhou apenas para mim com cara feia, deu meia volta com a sua barriga gorda, subiu para dentro da carrinha, fechou a porta rapidamente e arrancou dali enquanto os outros atrás já começavam a buzinar...

Quando dei por mim, estava no meio da estrada, com pelos de gato nas mãos e com quinze carros de ambos os lados enquanto o Alves me gritava: - Bora! Vamos mas é embora!...

E assim o Sr. Paulo acabou em casa com as suas garrafas de vinho e na companhia de um amigo novo. Era preto com os olhos muito claros e pêlo muito macio. Não o podia deixar assim sem mais nem menos...e aquela hora não o podia entregar em mais lado nenhum. O Sr. Paulo vivia sozinho, por isso decidi dar-lhe um novo amigo e após uns ron-rons e uma breve conversa deixei-o ali.

Não sei quem eras nem sei se ficarás muito tempo por este mundo agreste...mas sinto que fiz o que tinha que fazer e mais não podia... Sobra-me apenas olhar para o lado de fora do carro com um pequeno sorriso enquanto digo - Resolvido no local! - em voz séria para o rádio.

Ainda tentei saber se o pequeno era dali de perto mas apenas encontrei uma casa vedada com dois Pitbulls nojentos no interior...

Pelo menos por hoje, ficaste a salvo. E assim espero que te aconteça sempre.

Há histórias pelo qual passamos que por vezes parecem dignas de um filme. E esta, foi uma dessas...mas aconteceu-me e eu fiz o que estava ao meu alcançe...

E felizmente, acabou bem....

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